Ardia o fogo debaixo da palha

“O Dário de Bruno” é um livro pleno. Sua leitura oferece ao leitor um prazer crescente, qualidade literária que o escritor Carlos Pinto Corrêa, desde seu o primeiro romance, “Abismos” (1998), já nos provara.

A narrativa da vida de Bruno – professor de matemática, universitário – implica uma rica travessia.

O autor do Diário de Bruno, não só é mestre na construção – distinta – de cada uma das personagens, como bem sabe, delicadamente, costurá-las Se comparássemos a trama da história de Bruno, com o processo de filmagem de uma bela história, para além dos atores, dirigidos, e em ação, certamente, escutaríamos certas reflexões (críticas) do Diretor desse filme. Bruno, “mutatis mutandi”, também é um diretor de cena: ele conta uma história. Nela, ele cruza reflexões sobre a existência de um homem-entre-homens com pensamentos de autores fantásticos. Convicto da tênue fronteira entre a liberdade do individuo e do “socius”, Bruno mantêm a simplicidade do verdadeiro intelectual. Aqui, cabe lembrar Marx: um “intelectual” é aquele que reflete permanentemente sobre o que faz.

Inicialmente, o leitor bem pode supor tratar-se de um acadêmico inteligente (atraído pela escrita), um homem bem sucedido em todos os aspectos de sua vida. Sim e não. Bruno, logo de início confessa: escrever (...) não me trará garantia de futuro algum. Razoável seria pensar evoluindo para minha história, já que me encontro em um ponto de inércia que não me permite vislumbrar meu próprio futuro. Minha geração permanece estarrecida frente ao tempo que estacionou em um presente doloroso” [refere-se ao período da Ditadura Militar – do Golpe de 1964 aos terríveis anos 70 – descrito como deplorável realidade social mas sem perder o fio da História.

Apesar de ter acompanhado atentamente a luta contra os longos anos de ditadura dentro/fora de sua Universidade (Belo Horizonte), o professor Bruno, colega extremamente solidário, não se aliava aos movimentos de natureza marxista. Desde muito jovem (e em toda a sua vida), estuda com afinco as idéias de Bertrand Russel. E nosso professor jamais poderia imaginar que, à sua vida amorosa, de tal filósofo (e matemático), adviria, indiretamente, um bem imaterial. O narrador Bruno transita o tempo heraclitiano, num movimento em espiral, figura capaz de retorno a intervalos (sempre infinitos), numa vida finita. E ele sabe disto. Sabe que manter acesa a chama da vida também significa não tentar apagar a certeza da morte.

Em determinado ponto de sua vida, confuso, Bruno confessa (...) ardia o fogo debaixo da palha.

Quem é feliz na felicidade? Pergunta que cai como luva na vida (adulta) de Bruno: bom marido, bom pai, bom filho, professor solícito, amigo raro...

Eis que a paixão pela sensível e bela Suzana aciona uma mudança verdadeira na sua vida. Bruno já não se permite confundir desejo com pulsão (forte e fugaz). Desprezando a garantia do “futuro feliz” (monotonia do “plus ça change, pus c'est la même chose”), pela via da paixão, vence a força da surpresa; vence o saber-amar; e no amor “dá-se o que não se tem”.

Maria Lúcia Martins
luciarma@oi.com.br